terça-feira, 4 de março de 2008
O Palast der Republik
A propósito da discussão em torno da demolição do mercado do Bolhão, lembrei-me de uma outra discussão que por estes lados também circulou há algum tempo atrás e da qual ainda se ouvem alguns ecos, esta em torno da demolição do Palast der Republik.
O Palast der Republik é um edifício construído no centro de Berlim-Leste entre 1973-76 no local do antigo castelo (Berliner Stadtschloss) que tinha sido parcialmente destruído na Segunda Guerra Mundial e que foi demolido pelo governo da República Democrática Alemã em 1950. Servia de sede do Parlamento da Alemanha de Leste (Volkskammer) mas também tinha dois auditórios, galerias de arte, restaurantes e bowling. Em 2003 o governo (da actual República Federal da Alemanha) decidiu demolir o edifício, com o objectivo de reconstruír o antigo castelo da cidade. Esta demolição iniciou-se em 2006 e ainda está em curso.
Que sentido tem tudo isto? Em várias cidades alemãs (e de outros países afectados pela Grande Guerra) se tem procedido a uma sucessão de construções/reconstruções de edifícios e quarteirões com o objectivo de repor a história ao seu lugar, seja ao nível do objecto-ícone, seja ao nível do conjunto-ambiente espacial. Em Dresden, por exemplo (cidade que foi severamente destruída durante a guerra), após sucessivas reconstruções de vários edifícios da cidade, foi reconstruída muito recentemente, a Catedral (originalmente do século XVIII), praticamente do zero. No entanto, o caso do Palast der Republik parece-me o mais caricato a que tenho assistido.
É bastante discutível a atitude do governo da RDA. Perante um edifício meio destruído, havia três caminhos a seguir: mantê-lo como está, meio destruído (como foi feito por exemplo com a igreja Kaiser-Wilhelm-Gedächtnis na zona do Zoologischer Garten), reconstruír a parte destruída e repô-lo àquilo que era (como é o caso da maioria dos edifícios históricos em Berlim), ou então destruí-lo. A opção neste tipo de dilema é sempre discutível e sempre polémica, é certo. O peso político da decisão não pode ser negado: o castelo simbolizava o imperialismo prussiano, e esta decisão terá assim sido sobretudo uma decisão política, também ela discutível.
Mas destruír um edifício para reconstruír um que estava no seu lugar e que foi destruído há mais de 50 anos, parece-me ainda mais discutível. É também aqui clara a afirmação política desta demolição - a tentativa de apagar os símbolos do passado socialista da cidade. Em nome da história e do património defende-se a destuição de outra parte da história e do património. Serão os últimos 50 anos de história menos valiosos que os séculos anteriores?
Parece-me que vivemos numa época em que o património tem um grande peso, mas tendemos a valorizá-lo de uma forma um pouco estranha. Na questão do património, sobrevaloriza-se o passado longínquo em relação ao passado recente e ao presente e desvaloriza-se o carácter funcional e utilitário do património. Sucedem assim duas situações ridículas: por um lado, cómicas reutilizações do socialmente aceite património, onde preservar um edifício representa preservar a sua fachada (mesmo que já nem seja a original) e demolir e refazer um interior que nada tem a ver com o exterior, numa mistura de shopping center com rua comercial, centro de diversões, etc. Este é o exemplo do futuro Bolhão, por exemplo, e segundo consta também do futuro castelo de Berlim, onde serão reconstruídas as fachadas e inventado um novo interior de shoping disfarçado de castelo. Por outro lado, ao mesmo tempo que se sobrevalorizam determinados ícones, desvaloriza-se um outro património que por ser mais recente ou simplesmente menos espectacular e emblemático, é rapidamente ignorado e muitas vezes demolido. Este tipo de património discreto e abandonado abunda na cidade do Porto, como são exemplo as casas do século XIX, mas também edifícios e outras estruturas do passado século (XX).
Parece-me que urge uma reflexão geral em torno da questão do património, mas uma reflexão séria, para que se acabem com as demolições disfarçadas de reabilitações, com as demolições para posteriores reconstruções e com as reinterpretações ao estilo da época. Parece-me que só uma sociedade informada e esclarecida em torno destas questões, pode acabar com este tipo de situações.
Fotos: Wikipédia (1977), Vasco Cortez (2005 e 2007) e Francisca Martins (2007).
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